ELA TEM 20 ANOS

Marcos Kim

"Meu amor / não há mal nenhum gostar assim" - Jorge Vercilo, "Final Feliz"

Ela tem 20 anos. Como milhões, dezenas de milhões de meninas neste
mundo, ela tem 20 anos. Mas ela, justamente ela, foi se interessar por
mim, e eu tenho 37. Dezessete anos nos separam, neste 17 de dezembro de
2005, meu aniversário.

Ela me achou, sabe lá como, nas entranhas da internet, num tal de
Par Perfeito. Leu o perfil todo, mas nem viu as fotos do álbum. Bastou o
ícone. Diz que gostou do meu sorriso. Mas não me lembro de ter colocado
uma foto com sorriso no ícone, até porque sorrio pouco. Ela deve ter
imaginado esse sorriso. O que os olhos mais vêem são ilusões de ótica. O
que vemos é o que somos, não o que avistamos.

Me escreveu, e nem acreditei que uma menina tão graciosa pudesse se
interessar por mim, um quase-tiozinho. Ela poderia facilitar: poderia
ser feia, gorda, burra e chata. Mas não é. Muito pelo contrário, em cada
item. É um encanto, no brutal frescor dos seus 20 anos.

Antes que você diga o surrado chavão "ah, idade não tem nada a ver,
o que importa é a cabeça" etc etc, vou logo dizendo: ela mora longe,
muito longe. 600km nos separam. Repito por extenso, pra não deixar
dúvidas do montante numérico: seiscentos quilômetros.


E não me venha você com um "mas amor não mede distância". Amor seria
uma palavra precipitada. E o hodômetro do carro mede sim a distância, e
iisto se traduz isto em quilômetros, que se traduzem em litros de
gasolina consumida, que se traduzem em reais, muitos reais gastos,
muitas horas gastas. De novo: são seiscentos quilômetros.

Me poupe de um "pô, Kim, como você é frio!". Desculpe, eu sou
pragmático. E admita: é fácil ser tresloucadamente romântico quando não
é contigo; não é você que vai pagar pra ver. Nem me diga que acredita
num final feliz hollywoodiano. Você quer ser o espectador da novela da
vida, ouvir o que eu tenho pra contar depois, maldisfarçando um  sorriso
sadomasoquista. Desculpe de novo, mas nada vai rolar. Estes 37 anos
vividos têm de ter alguma utilidade, e me fazer tomar algumas decisões
sensatas.

Você se decepciona, ergue os ombros, diz que precisa ir, tchau,
abraço, te cuida, vai pela sombra etc. E eu vou pela sombra, ainda que
não haja sombra, porque minha alma é soturna e minha cara taciturna. Sou
o cara que não sorri.


Quando você está longe, eu dialogo comigo, e chego a sorrir sozinho.
Na verdade, queria acreditar exatamente no que você falou. Queria
acreditar que a idade não importa, a distância não importa, o que
importa é acreditar, deixar acontecer, vivenciar as oportunidades
oferecidas pela vida, abrir os braços e olhar o céu, o céu, o céu,
sentir Deus tocando minha face, com sua luz ancestral. E na verdade,
acredito em tudo isso. É bom, é gostoso acreditar em tudo isso. Aquece.
Rejuvenesce.

Meu Deus, peraí, onde eu tava, com 20 anos? Na USP, quinze quilos a
menos, toneladas de preocupações a menos, virgindade recém-perdida,
primeiro cigarro de maconha, cursando jornalismo, segundo ano da
faculdade. Hoje é facul. Pra falar com a moçada, preciso me adaptar,
saber decifrar os hieróglifos neoportugueses que circulam na internet.

Eu tinha então um Monza hatch vermelho, dotado de um honorável
Motoradio. Em casa havia toca-discos e máquina de escrever Olivetti,
barulhenta e gigantesca, na qual eu escrevia os primeiros contos e
crônicas, logo deixados de lado. Agora tô ouvindo, enquanto escrevo num
minimalista powerbook de 12 polegadas, alguns MP3 do Jorge Vercilo, com
microscópicos fones de ouvido. Tanta coisa mudou, mas taí o círculo
espiral da vida: depois de todos estes longos anos, voltei a produzir
crônicas. E agora, aos 37 anos, escrevo sobre uma encantadora menina de
20 anos.


As fotos dela estão no HD do powerbook. De vez em quando eu abro uma
em particular e fico olhando, sobre uma moldura preta, passeando os
olhos em cada detalhe da imagem. A cada vez, me encanto mais. O brutal
frescor. Eu deveria parar com isso. Ser menos passional e mais racional.
Deveria deletar a imagem. Deletar a pessoa. Assim como ela surgiu, outra
surgirá. Mas a nossa memória é mais teimosa do que um HD: custa a
eliminar uma informação. Nosso cérebro é um imenso backup afetivo. Abro
a foto de novo.

Mas assim como certas pessoas surgem, desaparecem. Normalmente, na
mesma velocidade com que surgiram. Talvez ela suma amanhã. Semana que
vem. No fim, acho que nada vai acontecer. Me rendo ao pragmatismo. Ou
será medo? Tanto faz, a conseqüência é a mesma. Nem sempre precisa rolar
algo fisicamente entre duas pessoas pra ser bom, pra se dizer que algo
legal e real rolou. Mas enfim, este é o presente de aniversário que a
vida me deu: a lembrança. O calor desta lembrança, desta delicada
história sobre o que poderia ser mas não foi, a me aquecer. A lembrança
dela me acompanha, me conforta e me agasalha, quando ando na rua, contra
o vento, num dia cinzento. Me envolve, como um edredom quente e macio
que me abraça ao dormir.



Site de Jorge Vercilo (CD "Leve"):
www.jorgevercilo.com.br

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