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OS FICANTES DE 60 ANOS
Marcos Kim
Ao amigo Alex Villegas, que aprecia a grandeza das pequenezas do cotidiano
O casal se senta ao meu lado, no sofá no Sesc Vila Mariana. Primeiro
ele, bem no cantinho. Depois ela, um tanto rechonchuda, entre eu e ele.
Um senhor sereno, de óculos, com cerca de 60 a 65 anos; uma senhora
bonachona e sorridente, uns cinco anos a menos. Tenho a nítida lembrança
dela usando um chapéu antigo, com borda branca, combinando com o vestido
preto. Mas é uma memória afetiva (sempre mais legal), pois
racionalmente, sei que ela não estava de chapéu. Pega duas revistas
dentre as tantas da Sala de Leitura, acomoda-se ao lado dele. Achei que
cada um leria silenciosamente, e que fossem marido e mulher, muito
provavelmente avós, daquele tipo de casal que se fala pouco e se entende
muito, curtindo um feriadão numa terça-feira ensolarada. Errei. Errei.
Errei.
Aconchegam-se, bem juntinhos. Deixam uma das revistas de lado. A outra,
nas mãos dela, começa a ser lida em voz alta (não tão alta). Ela faz
isso com alguma dificuldade, derrapa em algumas frases. Mas segue firme
até o final dos parágrafos, quando faz algum comentário, sempre emendado
pela opinião dele. Parece uma tranqüila conversa a três, em que a
revista é a terceira participante.
Debaixo da minha cara (dizem os amigos que é) carrancuda, eu sorria
serenamente, ou pelo menos a alma fazia isso, feliz por testemunhar
aquela cena, sendo talvez um tanto intrometido, fazer o quê? Mas o sofá
era grande, cabíamos todos os quatro nele: ele, ela, eu e minha
rechonchuda curiosidade.
Continuei lendo minha revista, mas confesso que mal lembro o que li (ah
sim, o diário de um padre pedófilo, na “IstoÉ”…). Tava é querendo saber
mais sobre o casal. Que agora, cria um novo arranjo: ele empunhando a
revista, ela aconchegada no peito dele… Deu vontade de estar com uma
companheira, naquele exato momento, que também se aninhasse em mim,
suspirasse e murmurasse: “olha que casal mais fofo…” É, a solteirice tem
suas desvantagens. Nessa hora, dá um frio que quase dói.
A senhora, confortavelmente acomodada, comenta: “sem os óculos, não
consigo enxergar direito”. Ele assume a tarefa de ler a revista (era a
“Nova”), e se concentra no horóscopo…
De novo, seguem-se os comentários simultâneos do casal, a cada
parágrafo. E pra minha surpresa, começam a falar de internet. Ele
pergunta: “você tem computador em casa?”. Ela confirma, e devolve a
pergunta. Ora, então não são casados! Não moram juntos. Seriam então
namorados? Me ocorre que, quando chegaram, não estavam de mãos dadas, e
nem tem aliança nos dedos. Seriam então, ficantes? Simpatizei mais ainda
com eles: ficantes de 60 anos! Modernérrimo, diriam os moderninhos!
Por um momento, ela sai do aconchego do ombro do… como defini-lo agora?
Namoradinho? E pega caneta e papel. Anota um site! Devagarinho, soletra:
“dáblio dáblio dáblio …” Olhaí, a velhinha plugada! De repente, eles nem
são tão modernos, eu é que sou careta, por me surpreender. Surpresa
infundada, por sinal. Minha mãe, à beira dos seus saudáveis 70 anos,
está fazendo um curso de informática, e me pediu um notebook de
presente. Quer navegar na web… Sou testemunha desta geração setentona
plugada, em minha própria casa (ou melhor, na casa dela, porque sou um
adultescente assumido) e esqueço disso.
A outra revista estampava “Escola”, bem grande, no título, mas não vi
direito. Acho que os ficantes mal chegaram a lê-la. Levantam-se e vão ao
elevador, sem mãos dadas. Os mais lindos ficantes que já vi, nas
inúmeras vezes em que estive na Sala de Leitura do Sesc Vila Mariana.
Será que daqui, iriam prum motel???
Tive vontade de segui-los. Apenas pra… sei lá, parabenizá-los por ser,
digamos, tão fofos (não fica bem um homem dizer esta palavra? Agora já
foi). Queria saber tanto mais: como se conheceram… se namoram… se só
ficam… se tomam uma cerveja, uma cachacinha… se fazem amor. Por quê será
que a gente, que se acha jovem, sempre pensa que velho não transa?
Talvez saboreiem o sexo muito melhor do que a gente, com mais sabedoria
e cumplicidade. Talvez, inteligentemente, não dêem tanta importância ao
sexo, e dêem importância apenas ao que é importante. Talvez não dêem
importância a nada, e não achem nada tão importante quanto soltar um bom
e sonoro peido, sem se preocupar com a opinião alheia. Talvez saibam que
importante é apenas viver o momento. Minha mãe diz que, na idade dela,
cada dia é um brinde. Lembro daquele poema apócrifo, “Instantes”,
atribuído erroneamente a Jorge Luis Borges. Resumidamente, é assim:
“Se eu pudesse viver novamente a minha vida, trataria de cometer mais
erros. Relaxaria mais. Seria mais tolo; na verdade, bem poucas coisas
levaria a sério. Contemplaria mais entardeceres e amanheceres. Porque,
se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos; não perca o agora.
Eu nunca saía sem uma bolsa d’água, um guarda-chuva e um pára-quedas; se
voltasse a viver, viajaria mais leve, viajaria mais. Mas, já viram,
tenho 85 anos e sei que estou morrendo.”
Ver aquele casal de ficantes sexagenários me fez pensar em muita coisa,
durante minha caminhada de volta pra casa. Aliás, sou um peripatético,
penso muito enquanto caminho. Bateu um certo frio na alma, naquele
feriado ensolarado de 15 de Novembro. Penso numa paráfrase: namoradas
não são pra sempre, mas as ex-namoradas são. Lembrei de várias delas, e
porque cada uma se foi. E não concluí nada, porque não há o que
concluir. Como dizia minha professora de canto: “todo relacionamento dá
e deu certo, porque dura o tempo exato que tem de durar. Nem mais, nem
menos”. Sou grato a Deus por colocá-las no meu caminho, e não lamento
nem um segundo do tempo que dediquei a cada uma delas.
Apenas lamento estar só, de novo (e de novo e de novo), aos 36 anos. E
me senti com o peso dos derradeiros 85 anos do poema. “Sei que estou
morrendo.” O tempo parece voar depois dos 30. As crises depressivas
ficam mais freqüentes. Desanimei, mas não desisti. Ainda preciso ter
alguma fofa (agora peguei gosto na palavra) pra aninhar a cabeça no meu
peito, enquanto eu leio uma revista pra ela, até precisarmos de óculos.
Alguma candidata?
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