Caverna Angélica, uma das mais belas do Parque Terra Ronca

A LADEIRA, A LIBERDADE E A COLEIRA

Marcos Kim

“A bem-aventurança é agora. No céu, você terá um enlevo tão maravilhoso contemplando Deus que nem terá condições de se dedicar à sua própria experiência. O céu não é o lugar para se ter essa experiência – o lugar para ela é aqui” – Joseph Campbell, em “O Poder do Mito”

Do estacionamento interno do Parque Villa-Lobos, é preciso subir uma escada de concreto, pra chegar ao parque. Uns vinte degraus, talvez. Do lado, em meio ao inclinado gramado, havia algumas marcas de terra exposta. Já subiram por ali, certamente. Penso: por quê alguém se arriscaria a subir num lugar relativamente perigoso, se tem uma escada exatamente ao lado? Deve ter uns 45 graus de inclinação, e altura de uns sete metros. Um tombo ali pode machucar. Não é uma idiotice? Resolvo subir pelo gramado.

Tem uma beirinha de concreto, com altura de meio metro em relação à rua. Depois começa a ladeira no gramado. No começo, fácil. Um escorregão ali, no máximo, me deixaria ralado no chão. Se eu cair de cabeça, quem sabe não desenvolvo algum poder paranormal? Talvez eu consiga adivinhar os números da Mega-Sena. Ou algo mais valioso: entender o pensamento das mulheres! Não, aí é pretensão demais.

Mais alguns passos, chego em pouco mais da metade do caminho. Dou uma paradinha. Não vejo muitos pontos seguros pra se pisar. Olho pra trás. Não foi boa idéia, percebi que já estava a uns cinco metros de altura, o carro começa a ficar menor, lá embaixo. Se meu pai estivesse aqui, ele diria, com sua peculiar prioridade: “não vai cair em cima do carro, depois sai caro pra arrumar a lataria!”. Quisera eu que fosse uma ironia.

Um tombo agora poderia realmente amassar a lataria. A minha lataria, não a do carro. Pelo menos o preju seria menor. Meu carro é novo; já eu tô precisando mesmo de uma funilaria geral. Nem tanta, na verdade. Não chego a ser feio. Me acho até meio parecido com o Brad Pitt.

Estrada de São Domingos, exatamente na fronteira entre Bahia e Goiás

Numa noite chuvosa, durante um blackout, de costas e vestindo sobretudo preto, dá pra perceber a semelhança. Semelhança inclusive financeira: o que ele ganha por minuto eu também ganho por ano.

Fico um pouco preocupado com a altura da ladeira. A escada de concreto tá do lado, mas teimei. Vou chegar lá. Falta pouco. O negócio agora é o seguinte: não ficar pensando muito na queda, mas também não ignorar esta possibilidade. Medo, não; excesso de confiança, também não; precaução e prudência, sim.

Mais alguns lentos e seguros passos. Não olho pra trás, pra não ter medo; não olho pra cima, pra não perder de vista onde piso. Vou passo por passo, olhando com cautela o local exato onde devo colocar cada pé. Chego lá em cima, afinal. Curto uma satisfaçãozinha, enquanto olho pra baixo.

Eu sei, eu sei, o resultado em si, definitivamente, não é nada. Foi uma ladeira ridícula. E a escada tava ali o tempo todo. Mas como dizem, o barato de uma viagem não é só o destino final, é o percurso. O que se aprende e apreende nele. Pensei em passado, futuro e o que importa: o presente.

Nossa vida é uma ladeira. Talvez, muitas ladeiras. Algumas são dunas enormes de areia: dois passos pra frente, um pra trás. E como complicação pouca é bobagem, tem umas bifurcações no caminho – e sem placa. O problema não é só subir a ladeira, é escolher qual ladeira subir. E aí? Se Deus nos deu a benção da vida, também nos deu o encargo do livre-arbítrio. Deixou nas nossas mãos. No caso, nos nossos pés. Onde pisar?

De repente, você escolhe a ladeira certa, com o destino certo, e precisa investir toda a atenção e dedicação que puder. Como dizia Joseph Campbell, você encontrou o caminho da sua bem-aventurança. Mas se você escolhe a ladeira errada, terá o Trabalho de Sísifo.

Joseph Campbell, no espetacular livro “O Poder do Mito” (o meu tá destroçado, de tanto reler; o DVD com o documentário foi recém-lançado), dedica um capítulo inteiro à bem-aventurança: “Sacríficio e Bem-Aventurança”. As palavras vindas do maior mitólogo do mundo, do alto dos seus 83 anos, precisam ser lidas com respeito. E ele relata experiências pessoais, de forma franca e saborosa. Uma citação:

“Onde quer que você esteja, se estiver no encalço da sua bem-aventurança, você estará desfrutando aquele frescor, aquela vida intensa dentro de você, o tempo todo. Persiga a sua bem-aventurança e não tenha medo, que as portas se abrirão, lá onde você não sabia que havia portas.”

Falando em mitologia, um parênteses sobre Sísifo. De acordo com a mitologia grega, ele era o rei de Corinto, e escapou uma vez de Tânatos, o deus da morte. Zeus ficou irado, mandou Hermes catar Sísifo e levá-lo ao Inferno. Lá, foi condenado a rolar uma rocha até o cume de um monte, de onde ela sempre despencava. E lá ia Sísifo de volta, pegar a rocha e recomeçar a rolá-la morro acima, eternamente…

Muitas vezes nossas escolhas acabam assim. Talvez a maioria. Todos os relacionamentos passados. Você tentou. Até noivou. Comprou móveis, fogão, geladeira, carro, correu atrás de apartamento. Mas na hora de casar… a rocha rolou morro abaixo. E lá foi você tentar de novo. E a coisa veio morro abaixo de novo. E você pára, respira… Mas tenta de novo…E tem o vestibular. E tem o concurso público. E tem tantas outras coisas que podem ser um Trabalho de Sísifo. Mas diferente do rei grego, você tem escolha. Pode fazer o seu próprio Inferno, se não souber a hora de desistir da ladeira errada e procurar a ladeira certa. Tudo na vida são escolhas e renúncias. Só depende de você. Conselhos são eventualmente úteis, mas quem vai arcar com as conseqüências da decisão não serão os palpiteiros: será só você.

Teve uma ladeira mais interessante que peguei, outro dia. Parque Estadual de Terra Ronca, na fronteira de Goiás com a Bahia. Um conjunto espetacular de cavernas (cerca de trezentas, sendo a Angélica uma das mais fascinantes). Desci a Gruta São Bernardo. Descer é o termo. É daquelas que, se o guia avisa o quanto o acesso é difícil, você não vai. Mas ele (Ramiro, excelente guia) mostrou fotos irresistíveis. Não tinha como não ir.

A ladeira de entrada era uma ribanceira de 80 metros, inclinação de uns 60 graus. Nem tem como mostrar numa foto. E não havia cordas. Pra ficar melhor, muitas pedras soltas no caminho, portanto nem convinha descer em grupo, pra não atingir quem tá na frente. Capacete obrigatório. Antes de descer, lembrei da lição daquela ladeirinha: passo por passo.

Desci na boa, apesar do pesado equipamento fotográfico que sempre carrego. Lá embaixo, exausto, aprecio um belo e limpo rio que corre caverna adentro. Na beirinha dele, relaxei. Aí sim escorreguei e caí de bunda n’água…

A recompensa: uma das mais belas cavernas que visitei na vida. Pena que minhas fotos não fizeram jus a mais esta criação de Deus. Ali reverenciei uma obra de milhões de anos. Milhões de anos. Cavernas são catedrais orgânicas. E ainda está viva. Cada estalactite cresce um milímetro por ano. Ela carrega um fabuloso passado, mas vive o presente. Persiste.

Eu sempre tive (tenho) um apego ao passado. Sempre tive este hábito de fotografar compulsivamente, de rever fotos. Reler livros. Rever filmes. Ouvir e reouvir músicas antigas. Escrever, pra eternizar alguns momentos. Não acho necessariamente errado. Mas, como dizem no budismo, é preciso praticar o desapego. Me agarrrar em lembranças não me deixa andar pra frente. Tenho de pensar um pouco no futuro também, mas sem excesso: fiz minha Previdência Privada, tá bom assim. Me falta viver o presente.

Vejo algumas amigas que querem (com a licença do termo antiquado) subir ao altar. Mas se apegam demais ao que já passou. Não deixam um novo homem ser realmente novo, precisam ficar comparando-o o tempo todo com os caras do passado. Fazer um extenso check-list, de prancheta na mão, por trás de um escudo. Nem percebem o quanto são reacionárias, repulsivamente reacionárias. E passam a criticar o homem pelo insucesso na vida pessoal, enquanto, na verdade, nunca se permitiram realmente viver uma nova história. Não adianta estar com o corpo no presente e a cabeça aferroada ao passado.

Não sei se é uma citação apócrifa do Rubem Fonseca, no visceral livro “A Coleira do Cão”, mas enfim, aí vai: “Já quebrei meus grilhões, dirás talvez. Também o cão, com grande esforço, arranca-se da cadeia e foge. Mas, preso à coleira, vai arrastando um bom pedaço da corrente”. (atribuído a Pérsio, Sat. V, 158).

No interior da Caverna Terra Ronca

Me falta viver o presente. O futuro não é incerto. Se escreve. O passado a gente reescreve, porque enxerga melhor e reinterpreta conforme o tempo passa, mas não podemos nos apegar a ele, como cães encoleirados. Precisamos apenas lembrar o mínimo necessário do passado pra pisar bem no presente. Nada é imutável, só o tempo perdido. É a lição que a ladeira me ensinou. O tempo de viver é agora é já. Você está presente no seu presente?

 

Trecho de “O Poder do Mito”:
http://culturabrasil.org/campbell.htm

DVD “O Poder do Mito”:
http://www.videocultura.tv.br/cultura/productdetail.asp?ProdId=1063148&ProdTypeId=6&CatId=37507

Marcos Kim – 07/12/2005

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